quinta-feira, 16 de agosto de 2012


1. INTRODUÇÃO


Meu interesse, neste estudo, consiste em investigar a vida de um personagem relevante no desenvolvimento da economia do mate no Paraná, e também a dos seus familiares, tanto ascendentes como descendentes, de modo a ampliar o conhecimento não só sobre eles mas também da sociedade paranaense de que fizeram parte.   

O mate foi a atividade econômica preponderante em certo período da nossa história. Representou em boa medida a base material da sociedade/civilização que se constituiu neste pedaço do território brasileiro. Essa atividade predominou por mais de cem anos, a partir da terceira década do século XIX, durante todo o Império (e algumas décadas além dele), tendo sido decisiva para a própria constituição do Paraná como entidade política independente. Durante esse período o Paraná dependeu fundamentalmente da exportação do mate para o seu progresso, fonte de renda para o setor privado e de receita para o governo.

O tenente-coronel (da Guarda Nacional) Caetano José Munhoz, doravante CJM (1817-1877) foi um dos primeiros a implantar engenho de erva-mate no planalto curitibano, em 1834, movido a energia hidráulica. Até então eles só existiam no Litoral (1). Destacou-se nessa atividade econômica a partir daí, durante quatro décadas, até falecer, em 1877. Destacou-se também pelo espírito inovador: foi o primeiro a instalar engenho movido a vapor em Curitiba, em 1872, antes mesmo do Barão do Serro Azul. Após a morte, seus engenhos e marcas registradas foram vendidos a outras empresas.

Conhecer a vida de CJM, e também de seus familiares, é conhecer a vida de representantes da elite daquela sociedade cujo fundamento econômico era o mate (essa elite também já foi chamada de burguesia do mate). Como decorrência da posição de CJM no âmbito do sistema produtivo, ele ocupou também posições sociais de relevo, ainda no tempo da 5ª comarca da província de São Paulo (promotor público interino, major da Guarda Nacional). CJM tinha 36 anos quando o Paraná emancipou-se de São Paulo, em 1853. Assim ele tanto pertence à 5ª. Comarca como à província do Paraná. Com a emancipação, a cidade de Curitiba, que contava então quase 7 mil habitantes (e o “termo” de Curitiba, 21 mil), torna-se capital da nova província do Império, vencendo a disputa com Paranaguá. 

Meu interesse básico estará voltado para as circunstâncias concretas da trajetória de vida de CJM, a partir de menções feitas a ele nas fontes disponíveis --- referências na historiografia paranaense, periódicos, documentos diversos no acervo de órgãos públicos etc. Desse modo, chego a complementar, esclarecer ou retificar informações sobre CJM contidas em algumas obras dessa historiografia. Como exemplos de retificação, cito aqui a época (e implicações) do incêndio em seus engenhos e a sua primazia na implantação de  engenho a vapor em Curitiba.   

O estudo dará uma ideia do papel que CJM desempenhou em sua comunidade, não só na atividade principal, de caráter privado, como senhor de engenho de mate, mas também na vida pública da província do Paraná, como comandante da Guarda Nacional, juiz municipal substituto, deputado da Assembleia Provincial, vereador etc. Além disso, procurará mostrar, na medida da disponibilidade das informações, aspectos da sua vida familiar e social, permitindo vislumbrar as características, instituições e mentalidade da sociedade local, à qual pertencia. Por isso, incorporei também informações sobre seus familiares até 1889, obtidas principalmente como subproduto da pesquisa no “Dezenove de Dezembro” sobre CJM. A leitura “transversal” dessas informações sobre os familiares poderá enriquecer a nossa visão da época dele. 

  Mostrarei que um personagem importante da economia do mate, pertencente à classe detentora dos meios de produção, ocupou também (não por acaso) posições-chave em outras esferas da vida social, o que representa um caso individual, exemplificativo, de como se traduz na prática a dominação de classe, que pode se dar diretamente (como neste caso) ou indiretamente. 

  A literatura sociológica entende por burguesia a classe social que detém a propriedade dos meios de produção (como terra, máquinas e equipamentos) e contrata força-de-trabalho para desenvolver as atividades produtivas, mediante a utilização coordenada desses fatores.

  Numa sociedade escravista como aquela em que viveu CJM, os escravos representaram uma força-de-trabalho diferenciada, pois eram propriedade dos senhores, obrigados a prover o seu sustento em contrapartida ao trabalho despendido. Nessa sociedade polarizada, ele nasceu numa família pertencente à classe dos senhores, que originou a burguesia do mate local. Faleceu em 1877, antes portanto da abolição da escravatura, ocorrida em 1888. Assim, só a partir desse ano é que o capitalismo aqui se completa formalmente, com a existência nítida das duas classes sociais fundamentais que o caracterizam: a da burguesia e a dos trabalhadores assalariados (2).  

                                                 *

  O período de vida de CJM corresponde ao início e primeiras décadas de desenvolvimento da economia do mate no Paraná.

  As atividades principais dessa economia relacionavam-se à extração da erva-mate e seu processamento industrial nos engenhos instalados para tal fim. O mate aqui produzido destinava-se à exportação, atendendo à demanda dos mercados platinos (Argentina e Uruguai) e do Chile. Tais atividades afirmam-se crescentemente a partir de 1820, quando Francisco de Alzagaray, empreendedor argentino e bom conhecedor do mercado, se radica em Paranaguá. 

  A burguesia do mate formou-se no litoral e “serra acima”, no planalto curitibano, em particular. Era integrada tanto por industriais quanto por comerciantes. Apoiava majoritariamente o Partido Conservador. Por outro lado, os latifundiários e criadores dos Campos Gerais vinculavam-se mais ao Partido Liberal (3).

  Na política do período provincial (1853-1889), vai se destacar, como líder do Partido Conservador, Manoel Antônio Guimarães (1813-1893), que receberia o título de Barão e depois Visconde de Nácar, residente em Paranaguá. Por outro lado, o chefe do Partido Liberal será o Conselheiro Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá (1827-1903), de Palmeira. 

À medida que a economia do mate evolui, sua burguesia se consolida,  influenciando os diversos aspectos da vida social.

A classe dominante local, integrada (não exclusivamente) por representantes da burguesia do mate, melhorou a infraestrutura econômica da província (estrada da Graciosa, ferrovia Curitiba-Paranaguá), promoveu a imigração, modernizou a cidade de Curitiba (com a realização de obras urbanas, inclusive a criação do Passeio Público em 1886 e com a edificação de palacetes), influenciou as opiniões correntes expressas na imprensa da época (iniciada com o “Dezenove de Dezembro”), adotou certos usos e costumes relacionados à alimentação, vestuário, estilo e condições de habitação, reprimiu os “fandangos e batuques”, criou a primeira universidade do Brasil etc (4).

  Mas este não é um estudo sobre uma determinada classe nem sobre a economia do mate em geral. É apenas uma investigação das especificidades concretas – em dado tempo e lugar – da vida de um indivíduo e seus familiares, pertencentes à camada dirigente da sociedade em que viveram, as quais interessam na medida em que ajudam a caracterizar essa mesma sociedade, que é a sociedade curitibana do tempo do Império, de caráter escravista, cuja prosperidade material dependia principalmente de um produto de exportação – o mate.

Este é assim um estudo sobre a história local que privilegia a dimensão do indivíduo mas não ignora o contexto social em que eles  estão inseridos e que condiciona suas ações. Para a caracterização desse contexto me apoiei largamente em autores reconhecidamente dignos de confiança, citados ao longo do trabalho.
                                                 *

 Uma outra justificativa para a realização do estudo refere-se ao fato de que CJM teve uma longa descendência, cujos representantes desempenharam diferentes papéis em nossa vida social. De seu primeiro casamento nasceram 10 filhos, e do segundo, 8. Além de atuarem na economia ervateira, ou juntamente com ela, constata-se a presença de descendentes de CJM na política, no serviço público, no direito, no magistério, em organizações militares, na literatura, no ensaísmo histórico e sociológico etc. Dois desses descendentes destacaram-se na política, chegando a exercer a chefia do poder Executivo paranaense: Caetano Munhoz da Rocha, seu neto, foi presidente do Estado de 1920 a 1928, e Bento Munhoz da Rocha Neto, seu bisneto, foi governador no período 1951-55. Aliás, Samuel Guimarães da Costa destaca, como “uma curiosa coincidência de significado histórico”, que em 1953 -- ano do centenário da emancipação política do Paraná -- os três poderes do Estado estavam nas mãos de bisnetos de CJM: o Executivo, então chefiado por Bento, o Legislativo pelo deputado Laertes Munhoz, e o Judiciário pelo desembargador Munhoz de Mello,

valendo lembrar que Caetano José Munhoz participara há cem anos passados das solenidades de posse do primeiro governador da Província Zacarias de Góes e Vasconcelos, por sinal homenageado e recepcionado em sua residência (5). 

Dos seis grupos familiares tradicionais indicados por Ricardo Costa de Oliveira, que constituem o “tronco dos povoadores e fundadores da classe dominante do Paraná” (6), CJM descende de dois – o de Matheus Martins Leme e o de Balthazar Carrasco dos Reis, enquanto sua primeira esposa, D. Francisca Cândida, descendia de um terceiro, o de João Rodrigues França.

O conceito de “classe dominante” é assim entendido por esse autor:  

A classe dominante é uma formação social heterogênea, mas unificada por um eixo principal no controle das riquezas materiais, simbólicas e na posse de um conjunto de capitais sociais e políticos que permitem a sua reprodução, assim como o exercício da dominação e do poder político. A classe dominante compõe um bloco no poder que “indica assim a unidade contraditória particular das classes ou frações de classe politicamente dominantes, na sua relação com uma forma particular do Estado capitalista” (POULANTZAS, 1977, p.229). O bloco no poder é formado pelas diversas frações que apresentam uma unidade contraditória. O conceito de bloco no poder não se resume apenas à formação capitalista, pode ser operacionalizado na análise de formações pré-capitalistas, como no caso do Estado Escravista Colonial no Brasil (SAES,1985, p. 94-95) (7). 

Em nosso caso,  

A fração ervateira da classe dominante paranaense foi aquela que durante mais tempo organizou a hegemonia dentro do bloco no poder regional na periodização estudada de 1853-1930 . /.../ A força da fração dos grandes proprietários de terra ligados ao tropeirismo e à pecuária também conheceu momentos de poder (8).   

CJM e seus familiares, que se dedicaram à mesma atividade econômica,  pertenceriam pois à fração ervateira da classe dominante paranaense.

                                                                       *

Por último, gostaria de alertar o leitor, por um imperativo ético (explicitação de um possível viés do pesquisador), que também descendo de CJM, pois meu pai era seu bisneto, e neto de Florêncio José Munhoz, um dos 10 filhos do seu primeiro casamento. À parte todo o interesse e a simpatia que o personagem em questão desperta em mim, devido a essa relação de parentesco, estou ciente da conveniência de manter sempre um distanciamento crítico, aquele do cientista social, para que eu possa avaliá-lo objetivamente, no contexto sociológico e histórico ao qual pertence.  



NOTAS


(1) Antes de 1820, só havia em Curitiba e na Lapa unidades de beneficiamento do mate muito rudimentares, com base na força humana (de índios ou negros), segundo LINHARES, Temístocles—“História Econômica do Mate”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969- p. 169 e 171. A partir de 1820, como se verá, a atividade ervateira se desenvolverá mais rapidamente no litoral, inclusive com a implantação de engenhos movidos a energia hidráulica na região de Morretes.

(2) Octavio IANNI, em “As Metamorfoses do Escravo”- S.Paulo: Difusão Europeia  do Livro, 1962, equipara os escravos a semoventes e fala em castas sociais ao referir-se aos senhores e escravos, no que é criticado por Eduardo S. PENA. No primeiro caso, este critica a visão economicista de Ianni que o leva a menosprezar a personalidade do escravo, sua capacidade de resistir a uma ordem social injusta. Mostra que na comarca de Curitiba os escravos souberam explorar, no âmbito jurídico, as oportunidades que a lei de 1871 (lei do Ventre Livre) lhe ofereceram para obter a sua liberdade. Por outro lado, ao usar o conceito de castas sociais, quando o comportamento do escravo é condicionado pelos desígnios do senhor, Ianni  impede uma análise da dinâmica das relações escravistas, das contradições e lutas aí presentes, de que resultam  transformações (cf. PENA, Eduardo Spiller—”O Jogo da Face:a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial”. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999- p.115, 125 e 132-133).
  
(3) OLIVEIRA, Ricardo Costa de—“O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná”. Curitiba: Moinho do Verbo, 2001, p. 170.

(4) Para uma ampla caracterização dessa sociedade apoiada no mate, no período provincial, consultar PEREIRA, Magnus Roberto de Mello—“Semeando Iras Rumo ao Progresso (Ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829-1889)”. Curitiba: Ed. da UFPR, 1996.  
 
(5) Apud OLIVEIRA, R.C.de – op. cit., p.6

(6) OLIVEIRA, R.C.de – op. cit., p.40

(7) Ibid., p. 266

(8) Ibid., p. 267

Nenhum comentário:

Postar um comentário