quinta-feira, 16 de agosto de 2012


2. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS


Antes de prosseguir, gostaria de incluir aqui algumas considerações sobre a metodologia empregada para a elaboração deste trabalho.

Meu ponto-de-partida foi a “Genealogia Paranaense”, de Francisco Negrão. Obtive ali informação, bem organizada, sobre os ancestrais de meu pai, pelo seu lado materno, pertencentes à família Munhoz, provindos de Cádiz, na Espanha, que se estabeleceram em Paranaguá, no litoral paranaense, no século XVIII. Sobre eles tinha apenas vago conhecimento, e disperso, que adquiri convivendo com meu pai e também com minha avó Arabela, filha de Florêncio José Munhoz (neto), homônimo de seu avô. Seus nomes, aliás, também constam daquela “Genealogia”.

Lendo o que ali está contido, e interessado em aprofundar-me na história do Paraná (não tanto da grande História mas principalmente a dos pequenos eventos, a da vida cotidiana das pessoas), decide eleger, como tema de uma pesquisa, o estudo desses ancestrais, não só para conhecer mais as minhas próprias origens mas principalmente para tomá-los como amostra da sociedade de que eles eram parte integrante. Tomei assim como referência básica o tenente-coronel Caetano José Munhoz. Dele decorre, como disse, uma longa descendência, cujos membros desempenharam o papel que lhes coube na sociedade paranaense de sua época -- não necessariamente “importante”, de acordo com a História convencional -- mas digno de interesse por ser revelador, de uma maneira ou de outra, dessa mesma sociedade (todavia,  como vimos, CJM foi um cidadão “importante” na comunidade em que vivia).      

Também pesquisei sobre os ancestrais de CJM, suas origens familiares, de modo a obter uma compreensão mais completa de seu “status” social, tanto por parte de pai quanto de mãe. Mas a ênfase maior foi sobre o seu lado paterno, dos membros da família Munhoz, que provieram, como disse, da Espanha e se radicaram no litoral paranaense. CJM foi o primeiro a se estabelecer “serra acima”, em 1834, com um engenho de erva-mate movido pelas águas do rio Belém.

A obra de F. Negrão -- com diferentes graus de informação sobre os ancestrais, estendendo-se mais sobre uns e menos sobre outros -- me forneceu, de qualquer forma, um roteiro básico para a minha pesquisa. O lapso de tempo em questão envolveu, considerando a história do Paraná, o período anterior a 1853, e o período posterior a esse ano, quando a 5ª Comarca da província de S. Paulo emancipou-se politicamente, constituindo a província do Paraná.

Para o primeiro período, depois da “Genealogia” (que foi útil tanto para o primeiro quanto para o segundo período), o trabalho mais importante a fornecer informações sobre os ancestrais de CJM é o do patrono dos nossos historiadores, o cronista Antonio Vieira dos Santos, cuja “Memória Histórica de Paranaguá”, de  1850, refere-se a eles em várias oportunidades. Outra fonte valiosa de informação para esse período é o “Boletim do Arquivo Municipal de Curitiba”, dirigido por Francisco Negrão, que publicou as atas da Câmara Municipal de Curitiba de 1693 a 1873, refletindo assim a vida da cidade em que viveu CJM e sua família. Nessas atas, são mencionados CJM e seus familiares. O Boletim abrange os volumes 1 a 66, disponíveis para consulta na Divisão de Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná.

A partir da citação, por Vieira dos Santos, do pai de CJM, como proprietário de uma fazenda na baía de Paranaguá, busquei e encontrei no Arquivo Público do Estado o registro dessa propriedade, conforme exigência da Lei de Terras. Esse procedimento foi adotado algumas vezes, vale dizer, a busca dos documentos originais sugerido por essas, e outras fontes consultadas. Mas também adotei o procedimento inverso, partindo da documentação primária relativa a CJM e familiares, consultando-os no Arquivo Público do Estado, consulta essa sugerida pela menção de seus nomes na catalogação do acervo dessa entidade.  

Quanto ao período posterior a 1853, a fonte básica para obter informações sobre CJM, e também seus familiares, foi a da imprensa da época, especialmente o primeiro jornal publicado no Paraná, o “Dezenove de Dezembro”, que abrange todo o período provincial, de 1854 a 1890.

Esse jornal começou a ser publicado em 1º de abril de 1854. Seu proprietário era Cândido Lopes, dono de uma tipografia em Niterói, que se transferiu para Curitiba estimulado pelo primeiro presidente da província do Paraná, Zacarias de Góes e Vasconcelos, que nele publicaria os atos oficiais. Inicialmente o jornal lançava uma edição por semana. A partir de 1871 passou a publicar duas edições. Tornou-se diário em 1884 mas depois retornou à situação anterior. Em 5 de setembro de 1885 passou a ser o “órgão do Partido Liberal”, absorvendo a “Província do Paraná”. Sua publicação prosseguiu até 9 de abril de 1890, sendo o único  periódico que abrange todo o período provincial do Paraná, apenas com uma breve interrupção (depois da edição de 18 de maio de 1861 o “Dezenove de Dezembro” só voltou a circular em 5 de novembro de 1862) (1).  O DD abrange assim praticamente todo o período da história do Paraná independente no tempo do Império e contém informações preciosas sobre os diferentes aspectos da vida da província, nas notas políticas e sociais, nos anúncios comerciais, nos obituários, na programação das companhias de teatro etc, além naturalmente das matérias sobre a administração pública que publicou como “diário oficial”. Por isso, esta monografia o utilizou sistematicamente como fonte de pesquisa para caracterizar as circunstâncias objetivas da vida de CJM, e também de seus familiares, dentro da sua abrangência temporal, que coincide com a da época de CJM, época escravocrata e monárquica, encerrada no final da década de 1880.

Complementarmente, também outros periódicos locais foram utilizados. Consultei-os todos -- esses e o “Dezenove de Dezembro” -- no precioso acervo, microfilmado, disponível na Divisão Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná. As citações aqui transcritas dessas fontes tiveram a sua ortografia atualizada. Tais informações orientaram a busca de documentos originais no Arquivo Público do Paraná, como já afirmei.  

Também fui orientado pelas menções a CJM contidas em diversas obras da historiografia paranaense, como as de Ermelino de Leão, Romário Martins, Newton Carneiro, Temístocles Linhares, David Carneiro, Maria Nicolas etc., além da produção universitária mais recente, representada pela importante pesquisa de Cecília Westphalen sobre o porto de Paranaguá e a dissertação de mestrado de Eduardo Spiller Pena, que se baseou no inventário de diversos ervateiros, inclusive no de CJM, a cujo documento original também tive acesso, no Fórum Cível de Curitiba. Outra fonte muito útil foi o “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”, com verbetes escritos por Cecília Maria Westphalen, Altiva Pilatti Balhana, Cassiana Lacerda Carollo, Marta Morais da Costa e Lina Benghi.  

Para a caracterização da família, especialmente em certos aspectos de sua intimidade, apoiei-me em dois livros: no de Alcides Munhoz intitulado “Folhas Cadentes”, elogio de seu tio (e patrono na Academia de Letras do Paraná) Alfredo Munhoz, filho de CJM, e no de Lilia Albuquerque Vellozo -- “Revivendo Fatos da Infância e da Adolescência” – em que registrou as recordações de sua avó Augusta Munhoz Negrão relativamente ao pai dela, CJM. Nessa questão, também me servi do “Memorial de Família” de Eremir Bley Corrêa, por conter os resultados de sua pesquisa sobre os familiares em fontes primárias (livros de batismos, casamentos e óbitos), que complementei com dados obtidos na Catedral de Curitiba, Mitra Diocesana de Paranaguá e Cemitério Municipal S. Francisco de Paula.

Vale salientar ainda que se a abrangência temporal desta monografia se estende até o final do Império, ela inicia na segunda metade do século XVIII, quando os ancestrais de CJM se estabeleceram em Paranaguá, vindos da Espanha, e se uniram às famílias locais, assunto abordado na seção das “Origens familiares” de CJM, no cap. 3.

Uma preocupação permanente que tive, ao longo da pesquisa, foi jamais esquecer o contexto econômico, político e ideológico que condicionou a vida dos familiares. No caso deste trabalho sobre CJM, que se ampliou para incluir seus ascendentes e descendentes, tal contexto refere-se a um longo período de tempo, que na História do Brasil corresponde ao fim da época colonial e se estende por toda a vida do país independente, até o final do Império. Esse é o lapso de tempo desta monografia, que poderá ter prosseguimento num segundo esforço de pesquisa, relativo ao período republicano, chegando até os nossos dias.

Na época do pai de CJM, em Paranaguá, as questões às quais se voltava a sociedade local (ou pelo menos a sua elite) eram as de que o país tivesse uma Constituição (ele assinou, no começo de 1824, uma manifestação da Câmara de Paranaguá pedindo que D. Pedro I sancionasse o projeto de Constituição); a da consolidação da Independência, que determinou a criação em Paranaguá da Sociedade Patriótica dos Defensores da Independência e Liberdade Constitucional (à qual pertenceu o pai de CJM); a da luta pela emancipação da 5ª Comarca da província de S.Paulo, dentre outras. Posteriormente, no tempo de CJM, vivia-se aqui, como já foi dito, o “ciclo do mate”, D. Pedro II passara a reinar no país desde 1840 (e tal reinado se estenderia até 1889, quando se proclamou a República), a província do Paraná enfim se constituíra em 1853, a questão da escravidão dividia opiniões, provocara o incidente com o navio inglês “Cormorant” na baía de Paranaguá e era importante para CJM e familiares pois possuíam escravos, a Guerra do Paraguai (1864-70) afetava a vida do país, e também a de CJM, tenente-coronel da Guarda Nacional, ou a de alguns de seus filhos, que atingiram a idade adulta no tempo do Império. Para a maior compreensão dessas questões nacionais, apoiei-me na historiografia que me pareceu mais fidedigna a seu respeito.

Procurei incorporar o maior número de informações que obtive relativas à vinculação de CJM e seus familiares à elite paranaense de sua época, visando comprovar a pressuposição inicial, que acredito ter sido confirmada. São informações que se referem não só à atividade econômica que desenvolveram mas também ao seu nível de renda, seu grau de instrução, cargos públicos que ocuparam, seu círculo social, o relacionamento com o governo (por exemplo, participação em arrematações e licitações) etc. Também incorporei informações, quando possível, sobre pessoas próximas aos familiares, para reforçar a caracterização dessa elite local.

Outro critério adotado para incluir informações a este trabalho foi o da sua relevância em mostrar como se apresentava Curitiba, ou a província do Paraná, no tempo do Império, a partir de 1854 (quando se inicia a imprensa local, fonte principal dessas informações), relativamente aos aspectos físico-territorial, econômico, social, político ou ideológico.

Assim, seguindo aqui essa ordem, procurei incorporar informações sobre Curitiba, mostrando que a região central assentava-se entre os rios Ivo e Belém, quais eram suas principais ruas (com os nomes da época), as principais igrejas, os três caminhos que ligavam Curitiba ao litoral, a conclusão da estrada da Graciosa em meados dos anos de 1870, o uso de diligências para o transporte público; os engenhos de mate existentes e quem eram os principais ervateiros da época; as atividades comerciais, especialmente as de exportação; o tamanho da população da província e dos principais núcleos urbanos, o peso dos escravos nessa população; os usos e costumes; os clubes sociais existentes, as formas de lazer, em que destacavam as festas religiosas; a importância da religião católica (que era a religião oficial do Estado), as irmandades de leigos; a situação da saúde: a inauguração do hospital da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba, a atuação do Dr. Murici e de outros médicos que aqui clinicavam; a situação da educação: as escolas primárias e secundárias existentes, os “exames de preparatórios”, os (poucos) estudantes paranaenses que estudavam fora da província; a atuação dos partidos Liberal e Conservador, numa província subordinada ao governo central (pois o regime era então unitário e não federativo, como passou a ser na República); o sistema eleitoral da época, em que se escolhiam vinte deputados para a Assembleia provincial, dois para a Câmara dos Deputados, sediada no Rio de Janeiro (“na Corte”) e uma lista tríplice para o Senado, da qual o Imperador optava por um nome que seria o senador do Paraná, cargo que era então vitalício; a escolha de vereadores de Curitiba, mas não de prefeito, pois não houve esse cargo no tempo do Império, se excetuarmos o período de 2 anos e 8 meses em 1835-1838; as idéias dominantes e os periódicos que as vinculavam etc.

Todas essas informações, e outras mais, constam deste trabalho, não de forma sistemática, seguindo o critério acima, mas dispersas ao longo dele. Acabaram sendo incorporadas, mais ou menos ao acaso, à medida que se procurava caracterizar a vida dos familiares. Estes foram definidos previamente como o objeto deste trabalho, que priorizou as pessoas e não as categorias sociológicas abstratas. Todavia, tal opção metodológica foi alimentada pela esperança de que o trabalho contribua, seguindo esse caminho alternativo, para o conhecimento da sociedade em que eles viveram.

Preferi citar textualmente certas passagens dos periódicos antigos a dizer a mesma coisa com minhas próprias palavras, visando não só assegurar a precisão da informação obtida mas também apresentar uma amostra do estilo e da linguagem da época, onde aparecem às vezes expressões curiosas.

Reuni, num mesmo capítulo, as informações obtidas sobre três mulheres da família de CJM, procurando também contribuir, de alguma forma, para a compreensão da condição feminina no tempo do Império. São elas a 2ª esposa de CJM, D. Narcisa, a esposa de seu irmão, D. Maria do Céu, e sua neta Francisca. As duas primeiras, após enviuvarem, dedicaram-se ao magistério. A terceira também já se encaminhava para ele, quando se casou,  revelando que tal ocupação era então uma das (poucas) opções profissionais oferecidas às mulheres solteiras ou viúvas instruídas. 

Cabe salientar, por fim, que enquanto realizava minha pesquisa no “Dezenove de Dezembro”, verifiquei que Fidencio Antonio Munhoz é frequentemente mencionado no jornal. Trata-se de um Munhoz de condição subalterna, contínuo/porteiro no serviço público. Ele era talvez membro dessa mesma família Munhoz de emigração mais recente para o Brasil a que pertencia CJM, embora seu nome não conste na “Genealogia Paranaense”, o que não é de admirar-se, dado o caráter enviesado da obra. Resolvi então tomá-lo também como objeto de estudo, dedicando a Fidencio o capítulo final do trabalho, a fim de indicar as diferenças (e semelhanças) entre os seus fatos biográficos e os dos familiares de CJM, vale dizer, estabelecendo um confronto entre o contínuo/porteiro e as pessoas que ocupavam posição mais elevada na hierarquia social.


  NOTA


(1) A interrupção da publicação do DD foi uma decorrência da perda do contrato que o jornal mantinha com o governo da província do Paraná em 1861 para publicação dos atos oficiais. O presidente José Francisco Cardoso, que não era apoiado nem pelos liberais nem pelos conservadores, requisitou espaço no jornal para utilização política em seu interesse, com o que Cândido Lopes não concordou, resultando daí a perda da subvenção que recebia e a criação em fevereiro de 1861 do “Correio Oficial” por parte do governo da província, que não perdurou por muito tempo, possibilitando o reaparecimento do DD em novembro de 1862. Cf “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”. Curitiba: Chain; Banco do Estado do Paraná, 1991- p. 123; NEGRÃO, Francisco—“Genealogia Paranaense”- v.1- Curitiba, 1926, p. 281-2 (edição fac-similar da Imprensa Oficial do Estado).     

Nenhum comentário:

Postar um comentário