quarta-feira, 15 de agosto de 2012


6.7- Escravos da família



         Negros no porão do navio (Fonte: Rugendas- "Viagem Pitoresca Através do Brasil". S.Paulo: Círculo do Livro, s/d- p.211)
No verbete sobre CJM do “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná”, de Ermelino de Leão, em passagem já citada, consta esta descrição  insólita  de seus trabalhadores cobertos do pó verde da erva-mate: 

Os operários do engenho eram todos escravos que durante o trabalho, somente vestidos com uma    tanga de aniagem ou saco velho,  apresentavam um aspecto curioso: à negra epiderme aderia um pó verde e as sobrancelhas, bigodes e cabelos cobriam de camadas intensas de ouro verde (1) 

Além dessa referência a escravos, encontrei na documentação do inventário post-mortem de CJM uma lista deles, matriculados em 1872, conforme exigência legal, e também de duas averbações, feitas em 1873. Os dados abaixo foram transcritos desses documentos, tal como ali aparecem:   

Escravos  pertencentes a CJM em 1872
(os dois últimos incorporados em 1873)

Nomes             Cor     Idade  Naturalidade      Aptdão p/trabº        Profissão

Luís                  preta   60       crioula                       pouca                 serv.doméstico
Henrique         preta   45       africana                     capaz                 engenho             
Marcello           preta   29       crioula                      capaz                  engenho
Leandro           parda  18       crioula                       capaz                 serv.doméstico
Leocádia         preta   10       crioula                       pouca                 serv.doméstico
Isabel               fula      45        africana                   capaz                  cozinheira
Catharina        preta   38       africana                     capaz                  serv.doméstico
Avelina            parda  17       crioula                       capaz                  serv.doméstico
João                 preta   16       Guaratuba                tem                      engenho
Justo (*)           preta   19       crioula                       tem                      engenho
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(*) Filho de Isabel, escrava de CJM
Crioulo: “Dizia-se do negro nascido na América” (dic. Aurélio)
 

CJM usava então escravos em seus engenhos (movidos a força hidráulica e, posteriormente, também a vapor). Mas pelo que se vê acima, dos seus 10 escravos em 1872-3, só 4 foram declarados trabalhadores nos engenhos. A maioria deles era empregada no serviço doméstico. Todavia, eles também podiam ser alugados de outros proprietários, para realizar determinadas tarefas (surrões de couro ou barricas para acondicionamento do mate) (2).

A importância do trabalho escravo na “economia do mate” é assunto controverso. Para Temístocles Linhares, em sua “História Econômica do Mate”, tal importância foi pequena (3).

Na coleta da erva, o fato de ser mais conveniente ela ser feita em certa época do ano e em um período muito curto (“em um ou dois meses, no máximo”), seria um “impedimento natural ao trabalho escravo”, pois oneraria demais o proprietário mantê-lo nessas condições.   

Os engenhos do período, que processavam a erva, foram de soque,  movidos a energia hidráulica ou a vapor.  Diz o autor: “Nos engenhos de soque, sim, o braço escravo negro podia ter sido utilizado”. Adotando técnica rudimentar, “os pilões manuais poderiam ter sido trabalhados por escravos negros”. 

Linhares distingue três fases no nosso ciclo do mate: a primeira, desde (provavelmente) a Provisão Régia de 1722 até a década de 1820 (essa Provisão decorria da visita que fez a Curitiba e Paranaguá o ouvidor Pardinho e indicava a erva-mate como alternativa econômica para a região, após a decadência da atividade mineradora); a segunda fase se estende dos anos de 1820, ou seja da chegada de Francisco Alzagaray a Paranaguá (e de Manuel Miró a Morretes), até a conclusão da estrada da Graciosa em 1876; e a terceira fase, posterior a essa data, caracterizada pelos avanços tecnológicos devidos a Francisco Camargo Pinto.

Para Linhares, no planalto, possivelmente só na primeira fase o braço escravo teria sido utilizado, diferentemente do litoral, em que ele seria utilizado tanto na primeira quanto na segunda fase do ciclo (isso explicaria, acrescento eu, o maior peso constatado nessa época da população negra no litoral). Na época da terceira fase, “com o retorno dos engenhos aos locais mais próximos da produção, serra acima” (cujo produção descia para o litoral pela estrada da Graciosa, em carroças), “já se falava muito em salário, como o comprova o trabalho de A.J. de Macedo Soares, publicado em 1875” (trata-se de “O Mate do Paraná”, a quem o autor recorre diversas vezes). Na realidade, diz Linhares, “já na década de 50, antes de se operarem as transformações tecnológicas de Camargo Pinto, não havia mais escravos nos engenhos”. Nessa época já não se falava em escravos e sim em jornaleiros ou trabalhadores (cita como exemplo uma representação ao Imperador em 1854 e também matérias publicadas em edições do “Dezenove de Dezembro” de 1854 e 1858).  Desse modo, embora Linhares admita a presença de escravos na atividade ervateira, ela não seria significativa, como forma predominante do trabalho.   

Entretanto, a questão, como disse, é controversa. Octavio Ianni, em “As Metamorfoses do Escravo”, salienta a importância, até certa época, do trabalho escravo no ciclo do mate da nossa economia, onde seria a força de trabalho predominante (4), e é a ele que Linhares se contrapõe, ao desenvolver sua argumentação, que procurei sintetizar acima.  

Eduardo S. Pena critica ambos os autores, por não buscarem, na documentação ou nas evidências empíricas, confirmação do que afirmam. Diz ele que Linhares “chegou a afirmar, de forma exagerada e sem comprovação empírica, que os escravos já haviam desaparecido do interior dos engenhos desde a década de 50, antes, portanto, das transformações tecnológicas indicadas por Ianni” (5). Ianni, por sua vez, é criticado porque pensa haver uma incompatibilidade entre a escravidão e o capitalismo, que requer um trabalhador livre, i.e. a força-de-trabalho transformada em mercadoria, livremente comercializada no mercado, sem a rigidez do trabalho escravo. Neste caso, o ônus do empresário é maior pois tem que prover, permanentemente, a subsistência do cativo, quer a conjuntura econômica seja boa ou má.   

Eduardo S. Pena, com base em registros oficiais sobre escravos e inventários post-mortem, analisa o escravismo na Comarca de Curitiba e conclui que os escravos continuaram a ser usados “maciçamente” nos anos 70 e 80 do século XIX na “economia do mate” (6). Além de Curitiba, tal Comarca abrangia os municípios de Campo Largo, Votuverava, Arraial Queimado, São José dos Pinhais e Iguaçu (7).  

 Constata que havia nessa Comarca 2.579 escravos matriculados em 1872. E uma média de 3,2 escravos por proprietário, na mesma região, em 1875 (8).

Afirma o autor:

   Como no início do século, o escravismo se sustentava pela predominância de pequenos proprietários — com 1 a 4 cativos — localizados  principalmente  nas  zonas  rurais   que circunvizinhavam a Capital da Comarca (9).

Eduardo Pena aponta como característica do escravismo paranaense “uma estrutura de posse de poucas proporções, mas relativamente ‘democrática’, espalhando os escravos pelas mãos de inúmeros pequenos proprietários” (10), diferentemente de outras regiões do país, onde se praticava a lavoura canavieira e cafeeira, em que a propriedade de escravos era mais concentrada.

Entretanto, observa que em 1804 havia senhores com mais de 40 escravos, o que já não ocorre em 1824, “e em 1875 somente um único  proprietário possuía mais de 25 escravos (Mariano de Almeida Torres)” (11).   

O autor analisou 110 inventários (inclusive o de CJM) de proprietários escravistas arquivados nas varas cíveis de Curitiba relativos ao período 1871-1887. Mais de 70% deles localizavam-se nas áreas rurais. Desses 110 inventários, 46 referiam-se a proprietários que de alguma forma estavam ligados à atividade ervateira (detentores de ervais, animais e carroças para transporte da erva, engenhos de beneficiamento e embalagem). Eles usavam 245 cativos, mais de 50% de toda a escravaria arrolada nos inventários. Dos 46 inventários, 8 eram de senhores de engenho de beneficiamento (um dos quais, CJM) que congregavam 66 escravos (12). Agregando outros 16, informados pelo “Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Província do Paraná” para os anos de 1877 e 1880, o autor constata a existência de 24 senhores de  engenho na região, donos de 166 cativos (13), ainda nesses anos tão próximos da Abolição. Não havia assim a incompatibilidade entre escravidão e capitalismo sustentada por Ianni, pois mesmo com as inovações tecnológicas no setor industrial do mate, os escravos continuaram a favorecer a acumulação capitalista, agora remanejados para outras atividades, inclusive para aquelas ligadas ao setor agrário, “responsável pela colheita e o preparo (‘sapeco’ e ‘cancheamento’) da erva bruta” (14), de que dependiam os engenhos. Desse modo, os escravos continuaram a ser empregados na atividade ervateira, simultaneamente às transformações tecnológicas ocorridas no âmbito da unidade industrial de beneficiamento do mate, que de fato contribuíam para diminuir a utilização de mão-de-obra nessa atividade. Essas transformações foram em grande parte devidas a Francisco Camargo Pinto, que retornou da Europa por volta de 1878 (15).  Mas elas ocorreram após o falecimento de CJM, que não pôde se beneficiar assim de tais transformações.

         Apesar da existência da lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro, este, como se sabe, continuou ocorrendo no País até 1850, e Paranaguá continuou a ser um centro de comércio de escravos, que inclusive se intensificou a partir daquela lei, conforme afirma Romário Martins (16). Certamente, foi de lá que provieram os primeiros escravos de CJM, que se instalou no planalto curitibano em 1834. CJM, como se viu, nasceu em Paranaguá e lá viviam seus pais até meados do século XIX. Aliás, foi ali que ocorreu, em 1850, o episódio do Cormorant, cruzador britânico que perseguiu navios negreiros até dentro da baía, sendo rechaçado por tiros de canhão desfechados pelo forte da ilha do Mel, o qual criaria um grave incidente diplomático com a Inglaterra. Quem importava tais escravos era gente da mais alta consideração da sociedade parnanguara, o que é omitido pelos nossos historiadores...   

Na pesquisa realizada no jornal “Dezenove de Dezembro” encontrei diversos anúncios relativos a escravos de propriedade de CJM, seu irmão Bento Florêncio e seu filho Alfredo Caetano. Apresento-os abaixo para que o leitor de hoje melhor compreenda o caráter iníquo daquela sociedade em que eles viveram, e também a resistência possível dos escravos à ordem social opressora, que se traduzia pela desobediência às normas vigentes, pela fuga e até mesmo pela morte do senhor, como no caso do crime que resultou no enforcamento, em 1854, de um escravo em S. José dos Pinhais, comunicado pelo juiz CJM ao presidente da província (cf  seção 5.3, cap.5 deste trabalho).      

-No DD de 25 de março de 1865- p.4 consta a seguinte nota, na seção “Repartição da polícia”:

Dia 20.
Pela patrulha foram recolhidos à prisão, à disposição do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia o alemão Carlos Forster, por ébrio, e o escravo Marcelo, do tenente-coronel Caetano José Munhós, em conseqüência de haver sido encontrado depois do toque de silêncio.

Marcelo tinha então 22 anos, considerando sua idade em 1872, conforme o quadro que abre esta seção 6.7.  

Pelo código de posturas de Curitiba (lei nº 79, de 11 de julho de 1861) havia multas para senhores de escravos e castigos para escravos que andassem pelas ruas “depois do toque de silêncio” (hora de silêncio ou recolher: 9h da noite no inverno; 10 h no verão) (17).

-No DD de 13 de janeiro de 1866- p.4 consta o seguinte anúncio:

ESCRAVO FUGIDO
Acha-se fugido o escravo Gabriel, crioulo, de idade 20 anos, cor preta, um pouco magro; quem o apreender e levá-lo a seu senhor, Caetano José Munhós, será gratificado.

Aparentemente, não foi recuperado, pois seu nome não aparece na lista de escravos matriculados e de averbações de 1872-3.

-No DD de 28 de fevereiro de 1866- p.3, dentre os citados em “Óbitos” consta o de “Antônio, 40 anos, escravo do tenente coronel Caetano José Munhós”

-No DD de 19 de fevereiro de 1870- p.3, em “Noticiário”, sob o título “Partes diárias da polícia”, consta nota afirmando que no dia 13 “foram presos, à ordem do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia ‘alguns escravos’”, que são citados, inclusiveMarcelo, de Caetano José Munhós” /.../ “por serem encontrados em um divertimento proibido” (batuques e fandangos eram proibidos). A nota ainda afirma que Marcelo foi posto em liberdade no dia 16. Ele reincidiu em desrespeitar as normas então vigentes (v. antes, sua prisão em 1865).

-No DD de 10 de janeiro de 1872- p.3, em “Noticiário”, se informa que no cartório do tabelião Nestor Borba foram registradas gratuitamente durante 1871 diversas cartas de liberdade passadas “sem ônus algum”, “condicionalmente” e “por compra de liberdade”. Dentre estas últimas consta aquela concedida à escrava Graciana—do tenente coronel CJM.

-No DD de 21 de fevereiro de 1877- p. 4 consta em “Anúncios” sob o título “Escravo fugido” o seguinte:

Caetano José Munhós gratifica a quem apreender o seu escravo de nome Justo, que se acha fugido há alguns dias, constando estar acoutado (*) em uma casa desta cidade, fato contra o qual protesta proceder com todo o rigor da lei.
Curitiba, 20 de fevereiro de 1877
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(*) Acoitar ou acoutar: dar asilo, guarida a; homiziar (dic. Aurélio) 

(o anúncio é republicado no DD de 24 de fevereiro de 1877- p. 4 e também é publicado na “Província do Paraná” de 24 de fevereiro de 1877- p. 4)

Justo era filho da cozinheira Isabel, também escrava de CJM, como informa a documentação de seu inventário. Considerando os dados antes apresentados, Justo tinha agora 23 anos de idade e sua mãe, se ainda vivia, 50. O nome de Isabel não aparece no rol de escravos citados na peça inicial que dá origem ao inventário de CJM, em dezembro de 1877, indicando também que poderia estar alforriada nessa data.  O processo de inventário menciona apenas 5 escravos, sendo que um deles, Ângelo, é referido como “incapaz de qualquer serviço por ser muito doentio e aleijado de um braço”. Certamente por isso, por não ter valor venal, não foi avaliado no inventário. A avaliação dos outros escravos foi a seguinte, naquela data: Luís, 70 anos (sic), 100$000; Justo, 25 anos (sic), 1:200$000; João, 22 anos, 1:200$000; Leocádia, 14 anos, 800$000.  Por aí se vê que a fuga de Justo, mencionada acima, significava para CJM um prejuízo de um conto e duzentos mil réis... Quanto a Luís, os herdeiros (18), ao longo do processo, decidem alforriá-lo, em consideração à sua idade mais avançada  e aos serviços prestados à família, como afirmam.  

Também são mencionados na imprensa local os parentes de CJM como proprietários de escravos: 

-No DD de 19 de março de 1859- p. 4 consta este anúncio:

Fugiu no dia 10 do corrente a escrava Lourença, crioula, com os sinais seguintes: -- alta, magra, fula, cabelos soltos e o dedo grande de um pé roído. Gratifica-se a quem a apresentar a seu senhor Bento F. Munhós.

-A “Província do Paraná”, de 23 de agosto de 1879- p. 4, traz a seguinte nota:

Bento Florencio Munhós pede aos srs negociantes desta cidade que nada entreguem por sua conta a seu escravo Lino, e declara que d’ora em diante não se torna responsável por objetos em seu nome trocados pelo seu mesmo escravo.
Curitiba, 21 de agosto de 1879
Bento Florencio Munhós 

 -No DD de 3 de fevereiro de 1866- p.4, em “Noticiário- Óbitos”, menciona-se o sepultamento de

Juliana, 14 anos, escrava do major Bento Florencio Munhós.

No testamento de D. Maria do Céu Taborda Munhoz, esposa de Bento Florêncio, que consultei no Arquivo Público do Estado, ela deixa um conto de réis para o seu afilhado Caetano Leite de Araújo, “filho de Sebastiana, que foi escrava da nossa casa” (o testamento está assim datado: “Curitiba, 19 de março de 1891”). 

-No DD de 20 de maio de 1871- p.4, em “Anúncios”, consta o seguinte:

Ao abaixo assinado fugiu, há 15 dias mais ou menos, um seu escravo de nome Antonio, de cor preta e tendo 10 a 12 anos de idade. Consta que foi visto nas imediações do Campo Comprido, talvez em caminho para os Campos Gerais. Protesta-se contra quem acoutá-lo, e gratifica-se a quem o trouxer a seu senhor.
Curitiba, 19 de maio de 1871
Alfredo Caetano Munhós

Mesmo o espiritualista Alfredo, que no futuro redigirá, durante muitos anos,  o periódico espírita “A Luz”, reivindicava seu escravo e ameaçava quem o acoitasse!  Só para se avaliar o grau em que estava o processo abolicionista nessa época, é interessante dizer que o DD de 24 de maio de 1871, p.3, informava que o ministro de Agricultura Theodoro M.F.Pereira da Silva apresentara na Câmara dos Deputados proposta do governo imperial (gabinete Rio Branco) para emancipar filhos de mulher escrava que nascessem depois dessa nova lei. Em 28 de setembro desse ano seria sancionada a lei do Ventre Livre.  

-Anúncio semelhante ao anterior consta no DD de 10 de janeiro de 1872, p. 4, nestes termos:

ESCRAVO FUGIDO-
Fugiu há 8 meses, mais ou menos, o escravo Antonio de 12 para 13 anos de idade. É de cor entre fula e preta; cabelo não muito grenho, corpo franzino. Supõe-se que tenha ido para os Campos Gerais. Gratifica-se com 100$000 rs. a quem o trouxer a seu senhor Alfredo Caetano Munhós. Curitiba, 9 de janeiro de 1872

-Pelo “Noticiário-Movimento da Cadeia” do DD de 9 de novembro de 1872- p.3 verifica-se que Antônio acabou sendo recapturado, um ano e meio após a sua fuga: 

/.../ A 2 foram presos em custódia, à ordem do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia, /.../ e o crioulo Antônio, escravo de Alfredo Caetano Munhós, por fugido.

Por fim, o “Dezenove de Dezembro” (19) informa sobre os festejos realizados no dia 28 de setembro de 1884, em homenagem ao visconde do Rio Branco pela lei do Ventre Livre (de 1871) e ao presidente da província Brasílio Machado pelos seus esforços na área da educação. Essa lei, além de considerar livres os filhos de mulher escrava que nascessem a partir de sua data, previa também a libertação de escravos por um “fundo de emancipação” ou mesmo por um pecúlio, formado pelo próprio escravo, provindo de “doações, legados e heranças” e suas economias (20). Os festejos prolongaram-se até o dia 29, quando se inaugurou uma escola e se entregou ao presidente Brasílio um “Livro d’Ouro” onde foram lançadas 68 novas libertações de escravos. Dentre os que concederam cartas de liberdade é citado Alfredo Caetano Munhoz, que libertou, “com indenização”, a escrava Florinda (21).  

Segundo Eduardo Pena, nessa época, a alforria podia ser: 1) gratuita, quando o proprietário a concedia ao escravo, mediante carta específica; 2) onerosa, quando o escravo pagava por sua liberdade; e 3) pelo Fundo de Emancipação, que indenizava o proprietário do escravo com recursos governamentais. Assim, a indenização à escrava de Alfredo tanto poderia ter sido feita com recursos dela própria como com recursos desse Fundo, o que talvez seja o seu caso, dada a condição fazendária de Alfredo e sua maior familiaridade com os procedimentos burocráticos. Ainda de acordo com Pena, na Comarca de Curitiba, entre 1873 e 1884, 365 escravos foram alforriados, dos quais 232 correspondiam a alforrias gratuitas, 101 alforrias onerosas e 32 pelo Fundo de Participação (cf. “O Jogo da Face”, op cit, p. 77).

O relatório do presidente Faria Sobrinho de 17 de fevereiro de 1887, p. 108, estende o período de tempo até 8 de janeiro de 1887, mas apenas com  relação ao número de escravos alforriados pelo Fundo de Emancipação da Província. Até aquela data, em todos os municípios do Paraná foram alforriados 214 escravos por conta desse Fundo, o que significou uma despesa de 123:817$042 rs, conforme dados ali citados da Tesouraria de Fazenda. Deduz-se daí que a despesa média, por escravo, foi de 578 mil réis.

 Para concluir, vou me referir a um assunto relacionado ao tema desta seção do capítulo, em que CJM não é envolvido como proprietário de escravos, e sim, certamente, como juiz substituto.

No “Expediente da presidência” de 19 de outubro de 1864, publicado no DD (22), consta despacho ao Chefe de Polícia em que o ten-cel CJM é citado. A presidência da província comunica ao Chefe de Polícia que ficou


ciente de terem sido entregues a João da Costa Cabral, encarregado pelo tenente-coronel Caetano José Munhós procurador de Bernardo Gavião & Ribeiro & Gavião, os escravos de nomes Modesto, Firmino, Salvador, Maurício, Samuel, Estolano, Clemente, Florencio e Juvencio, pertencentes aos frades carmelitas e arrendados por aqueles, a fim de serem conduzidos à província de S. Paulo.

 Esse evento está relacionado à questão da fazenda Capão Alto, em Castro, de propriedade dos frades carmelitas, que naquele ano de 1864 a arrendou, juntamente com o gado e os escravos, a Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião, segundo matéria publicada no “Boletim do Arquivo do Paraná” nº 23, de 1988, p.19-22.  Em abril de 1864 um representante dessa firma paulista veio à fazenda para buscar os escravos. Como estes administravam autonomamente a fazenda há mais de sete décadas, por decisão dos frades, já se consideravam livres e negaram-se a seguir para S.Paulo, razão por que os prejudicados recorreram à força policial de Castro, “que pediu reforços a Curitiba”, para cumprir o acordo de arrendamento. “Presos os líderes da resistência /.../ os demais negros ‘arrendados’ (cerca de 200) foram transferidos para São Paulo”.  Como um desses líderes chamava-se Firmino, segundo a fonte antes citada, acredito que os escravos mencionados no despacho da presidência transcrito acima poderiam ser os líderes da rebelião, que detidos por um período de tempo, seguiam agora, em outubro de 1864, para S.Paulo. Isso é confirmado pelo relatório sobre os acontecimentos encaminhado mais tarde (em 1º de fevereiro de 1865) pelo Chefe de Polícia ao presidente Pádua Fleury. Ele afirma aí ter mandado prender então onze escravos, “os cabeças da desobediência /.../ que podiam incitar os demais a fatos mais graves”. Esses escravos, como consta ainda no mesmo relatório, foram depois entregues ao preposto da firma, a fim  de seguirem para S.Paulo (23).

Após a extinção do tráfico, os escravos estavam sendo mais cobiçados, e se redistribuíam dentro do país, especialmente em favor da região de maior dinamismo econômico, a da cafeicultura (também a maior parte dos escravos de CJM em 1872-3 já não constava em seu inventário em 1877-8, indicando, provavelmente, que eles já tinham sido vendidos).

Como se viu, até irmandades religiosas, frades e espiritualistas eram proprietários de escravos. E isso ocorre numa época em que a consciência antiescravista já estava bem desenvolvida. Outros países da América do Sul já haviam então abolido a escravatura; por exemplo, a Colômbia em 1851 e a Argentina em 1853 (24). A Inglaterra, porque lhe era conveniente agora, combatia o tráfico de escravos nos mares. Queria-os assalariados, integrantes do mercado para seus produtos...  


NOTAS


(1) LEÃO, Ermelino Agostinho de – “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná”- op cit, v.I, p. 247

(2) PENA, Eduardo Spiller—“O Jogo da Face”- op cit, p. 83-4

(3) LINHARES, Temístocles—“História Econômica do Mate”- op cit, p. 169-172 e 237-243   

(4) IANNI, Octavio—“As Metamorfoses do Escravo”- op cit; cf também PENA, Eduardo Spiller—“O Jogo da Face”, op cit, p. 25.

(5) PENA, Eduardo S.- “O Jogo da Face”, op cit, p.300, nota 50.

(6) Ibid., p.79.

(7) Ibid., p. 33. V. também p. 294, nota 3

(8) Ibid., p. 8, 24 e 36.

(9) Ibid., p.8 e 33.

(10) Ibid., p. 85.

(11) Ibid., p.37.   

(12) Ibid., p.80.  Na p. 303, nota 73, o autor indica quem são os oito senhores de engenho de beneficiamento inventariados (cinco dos quais possuíam ervais, conforme nota 76, p.304, o que não era o caso de CJM):  Joaquim Ventura de Almeida Torres (9 escravos), Eleutherio José de Freitas (4), José Ignacio Loyola (9), Tiburcio Borges de Macedo (3), Manoel Antonio Carneiro (6), Caetano José Munhós (10), Vicente Ferreira da Luz (7) e Justina Garcia Teixeira (18).

(13) Ibid., p. 303, nota 73.

(14) Ibid., p. 65.

(15) CARNEIRO, David—“Fasmas Estruturais da Economia do Paraná”- op cit, p.110-111.

(16) Apud WACHOVICZ, Ruy Christovam—“História do Paraná”- op cit, p. 135. 

(17) DD de 16.10.1872- p.4 

(18) Os herdeiros D.Narcisa, Alfredo, João Alberto, Florêncio e Manoel de Souza Dias Negrão concordaram, segundo o processo de inventário de CJM, em assumir o encargo de alforriar o escravo Luiz.  

(19) DD de 1.10.1884- p.2 e DD de 3.10.1884- p.3

(20) À lei do Ventre Livre (lei nº 2040, de 28.09.1871) refere-se o Regulamento nº 5135, de 13.11.1872, conforme o DD de 15.03.1882- p. 4. 

(21) DD de 1.10.1884- p.2; v. também DD de 28.09.1884- p.3 e DD de 3.10.1884- p. 3

(22) DD de 5.11.1864- p. 2  

(23) MOREIRA, Júlio Estrela (org)- “Fontes para a História do Paraná: cronistas- séculos XIX e XX”. Curitiba, Secretaria de Estado da Cultrura, 1990- p. 49-51. O relatório do vice-presidente Manoel Antônio Guimarães de 17.02.1873, p. 13, refere-se à firma Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião como “casa bancária”.   

(24) RENAULT, Delso—“Rio de Janeiro: a Vida da Cidade Refletida nos Jornais”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1978- p. 77.

























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