quarta-feira, 15 de agosto de 2012


 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS  

   
         “O  importante não é o que fazem de nós,  mas  o que nós próprios
         fazemos daquilo que fazem de nós”.
                                                                                                                                 J.P. Sartre (1)


  Se não considerarmos a influência de fatores genéticos, o homem é produto do meio social. Quais eram as condições do meio que “produziu” CJM e seus familiares?

  Ele nasceu e viveu no Brasil do século XIX, no tempo do Império, antes da Lei Áurea. Viveu assim numa sociedade escravista, marcada pela desigualdade social extrema. Nessa sociedade de senhores e escravos, pertencia à classe dos senhores. Seu pai, um senhor de terras e escravos, era  agricultor e criador de gado na baía de Paranaguá, além de também se dedicar ao comércio exportador. E a família de sua mãe era de posses. O pai dela, arrematante do serviço de navegação do rio Cubatão (ou Nhundiaquara), era neto do fundador de Antonina, em cujas terras erigiu-se uma capela que daria origem à cidade.

  Ainda muito jovem, CJM entrou para o mundo dos negócios. Seu nome está associado à instalação em 1834, quando tinha apenas 17 anos, de um dos primeiros engenhos de beneficiamento de erva-mate (movido a energia hidráulica), no planalto curitibano. O mate, desde aproximadamente 1820 -- e por mais de cem anos -- seria o sustentáculo da economia paranaense, que com suas exportações atendia a demanda dos mercados platino e do Chile e se apoiava parcialmente no trabalho escravo. CJM se destacaria nessa economia do mate como um de seus principais representantes. Foi o primeiro a instalar, em Curitiba, engenho de mate a vapor, em 1872.

  Naquela sociedade, como na nossa de hoje, as pessoas que dominavam o sistema produtivo ocupavam também, direta ou indiretamente, as principais posições sociais e políticas. CJM por isso viria a ocupar algumas dessas posições de relevo.

Mas a sua era uma sociedade em que pesavam mais certos preconceitos e convenções. Um bom exemplo do convencionalismo da época é o episódio, relatado por Alcides Munhoz, da amiga da família que é aconselhada por CJM a não estar presente na recepção que ele ia dar ao Conselheiro Zacarias só por causa da “incerteza matrimonial” dela...

  Essa sociedade, dentre outras características, era católica, e o catolicismo, a religião oficial do Estado. Mas isso não impedia que a escravatura fosse encarada com naturalidade, considerada uma instituição social como qualquer outra, inclusive pelas entidades religiosas.

  Surgindo nesse meio social, com todos os condicionamentos daí decorrentes, quais seriam as opções que se ofereceriam a CJM ?

  Em primeiro lugar, ele se dedicou desde muito cedo, como já foi dito, às atividades econômicas. Poderia ter ido estudar na Corte, tornar-se “doutor em leis”, aquilo que desejaria, mais tarde, para seu filho Alfredo. Era comum, no Paraná provincial, as famílias mais abastadas mandarem os filhos estudar nos centros maiores. Mas isso não ocorreu com CJM, que optou pelo mundo dos negócios.

  Tornou-se então um dos principais ervateiros de Curitiba em seu tempo. Sua importância relativa no âmbito do sistema produtivo local levou-o a ocupar cargos públicos relevantes em outras áreas.  Foi nomeado comandante de um corpo de cavalaria da Guarda Nacional da capital, e eleito deputado à Assembleia Provincial, embora não tivesse muita vocação para ambas as funções.  De certo modo, ocupar essas funções representava uma imposição social.
 
  Ocupou o cargo de deputado provincial por duas vezes, nos biênios 1856-57 e 1860-61, mas aparentemente não foi um deputado muito atuante, exercendo a secretaria da Assembleia em determinado período. De qualquer forma, deu sua contribuição ao Poder Legislativo quando da discussão do projeto destinado a regulamentar a exploração e processamento da erva mate, visando coibir as falsificações e assegurar a boa qualidade da erva mate exportada pelo Paraná, um problema recorrentemente discutido na época do ciclo do mate. Também foi eleito vereador de Curitiba para o período 1877-80. Mas praticamente não exerceu esse mandato, pois faleceu em julho de 1877.

  Como tenente-coronel comandante da Guarda Nacional, sua atuação deixaria a desejar, pois não cumpriu as metas estabelecidas pelo governo central relativas ao recrutamento de voluntários para a Guerra do Paraguai, o que serviu de justificativa para o presidente Horta de Araújo suspendê-lo daquele comando, embora seja provável que tenham            pesado mais, nessa decisão, as divergências políticas entre os dois.

  CJM devia ter um espírito antibelicista e pouca vocação militar (por isso não recrutou suficientemente voluntários para a Guerra do Paraguai). Poderia até ter optado por participar efetivamente da campanha no Paraguai como fez seu colega ervateiro, ligado ao Partido Liberal, Luiz Manoel Agner, embora este fosse bem mais jovem (2). Mas não optou por esse caminho. Devia ter o caráter típico dos homens de negócios, que abominam a instabilidade política e gostam de regras         claras e normas bem definidas.   Isso permitiria que CJM se saísse melhor como juiz municipal substituto, mais coerente com seu perfil psicológico. Desempenhou esse cargo por, no mínimo, 14 anos, nos períodos 1854-62 e 1870-1877, com exceção, talvez, de 1875.  

              CJM decidiu, antes de tudo, ser um homem respeitável, conforme os padrões de sua época, ser um homem de princípios, honesto (cf. as referências encontradas no jornal “Dezenove de Dezembro”, e no trabalho de Louis Couty, sobre a qualidade de sua erva, que não era falsificada, como outras). Adotando a escala de valores de seu meio social, procurou corresponder a ela, sem questioná-la (especialmente quanto ao trabalho escravo).

  Alcides Munhoz salienta a questão do apego aos princípios, por parte de CJM, quando afirma:

Meu avô, Tenente Coronel Caetano José Munhoz, era um homem de caráter firme e de princípios inabaláveis./.../ Era um homem de vontade e de ação /.../ (3).

  Também Francisco Negrão salienta isso, quando dá a sua impressão geral a    respeito dele, repetindo em parte Alcides Munhoz  (4):

/.../ era homem enérgico e lutador, de caráter firme e princípios severos inabaláveis”. /.../ Homem honesto e laborioso, deu grande incremento à indústria” (da erva-mate)./.../ Foi abastado capitalista e homem de grande valor moral. Deu sólida educação a seus filhos.

  CJM decidiu acatar as instituições sociais então existentes, a sociedade tal como era, alinhando-se politicamente com o Partido Conservador, o que é indicado pelo seu relacionamento com pessoas claramente comprometidas com esse partido (Dr. Bento Fernandes de Barros, Manoel Antônio Guimarães etc) e também pelo fato de que seu período de ostracismo político coincide com o da predominância do Partido Liberal no poder. É interessante observar que ele fez política a vida toda, assim como seu irmão Bento Florêncio. Aliás, quando comparado a este, a pesquisa no jornal “Dezenove de Dezembro” mostra que ele foi bem menos sociável, pois Bento Florêncio é mencionado muitas vezes promovendo recepções, ou participando de eventos sociais, ao contrário de CJM. Quanto à política, infere-se, pelas informações aqui reunidas, que CJM foi prestigiado pelos presidentes Zacarias, Beaurepaire-Rohan, José Francisco Cardoso (no início de sua gestão) e Lamenha Lins. Mas os presidentes  Horta de Araújo e Carlos Augusto Ferraz de Abreu foram seus adversários explícitos. 

  Sua escrava Graciana só obteve a liberdade pela compra, conforme uma edição          do DD de 1872 (5), em vez de obtê-la “sem ônus algum”, o que também acontecia na          época. Isso expressava uma postura contrária ao abolicionismo sem indenização ao proprietário (opinião da corrente do Partido Conservador liderada por Manoel Euphrasio, genro do Visconde de Nácar) ou expressava apenas a limitação de seus recursos financeiros, dado o alto preço de um escravo?. De qualquer forma, uma postura antiabolicionista é confirmada por outro fato: tão tarde quanto 20 de fevereiro de 1877 ele ainda assina uma nota, publicada no DD do dia seguinte, oferecendo gratificação a quem apreendesse um escravo fugido, de nome Justo (avaliado em 1:200$000 no seu inventário), e ameaçava com o “rigor da lei” quem o estivesse  acoitando. Isso numa época em que a lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, já havia sido aprovada, e crescia o movimento pela emancipação dos escravos.   

            CJM seguiu sem questionar uma outra característica de seu meio social (e familiar), a de  tornar-se            católico. O catolicismo era a religião oficial do Império. Nesse sentido pertenceu a algumas irmandades vinculadas à Igreja Matriz e do Rosário (além da irmandade mantenedora da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba). Foi “festeiro” em algumas festividades religiosas. Quando deputado, CJM participou da Comissão de Assuntos Eclesiásticos da Assembleia Provincial.

            Apesar de comprometida com o escravismo, sua visão de mundo incluía a caridade cristã, que ele praticava nessas irmandades, e também diretamente, com relação a pessoas de condição social inferior. Uma edição do “Dezenove de Dezembro” de 1858 (6) publica nota do porteiro da secretaria do governo provincial em             que este agradece a certas pessoas “que o socorreram e se prestaram caridosamente          na sua grave enfermidade”. Uma das pessoas citadas é o tenente-coronel CJM.

            CJM não escolheu para si o radicalismo ou fanatismo político: na briga entre Francisco de Paula Guimarães e José Lourenço de Sá Ribas (cf. seção  5.1 do cap. 5), ambos tenentes-coronéis da Guarda Nacional, ele é elogiado pelo primeiro e mantinha boas relações com o segundo.

            Paula Guimarães refere-se às “maneiras delicadas e honrosas” com que lhe tratou, e também “à grandeza de seu mérito e à forma com que sempre costuma tratar a todos” (7).

Com relação a Sá Ribas, ele foi colega de CJM na administração da  Sociedade Harmonia em 1854 (cf seção 5.4 do cap. 5). Sá Ribas era o  secretário da Sociedade, e CJM (ainda major) o tesoureiro (8). Além disso, Sá Ribas presidiu, em 1875, o conselho fiscal da Caixa Econômica da província, do qual CJM era membro, como foi dito no cap. 4.  

            Tanto Sá Ribas quanto CJM integraram a comissão (de quatro membros) que visitou o então presidente Sebastião Gonçalves da Silva em sua residência e o convidou a assistir em 4 de julho de 1863, no hotel-Cassino Curitibano, “a partida que os amigos de S.Ex. lhe oferecem como prova de consideração, estima e de reconhecimento pelos serviços prestados a esta província” (9) (Sebastião assumira a presidência da província um mês antes, em 5 de junho). O dep. Sá Ribas era filho do cap. Lourenço Pinto (10), este padrinho de batismo de Francisca, a primeira esposa de CJM. 
           
            Também revelador de sua psicologia é a alegação de doença, para não julgar, em conselho de guerra, um colega da Guarda Nacional. Preferiu esse caminho a se confrontar, abertamente, com o presidente José Francisco Cardoso  (11).    

Quanto aos filhos de CJM, eles optaram pelo serviço público, exceto José Caetano. Foram empregados da Tesouraria da Fazenda Nacional, dos Correios ou militares. Suas filhas casaram com ervateiros ou funcionários públicos. Foram donas de casa. Mas a 2ª esposa de CJM, após enviuvar, dedicou-se ao magistério, assim como a viúva de seu irmão Bento Florêncio.

O último capítulo deste trabalho refere-se a um Munhoz de condição mais humilde. Procurei aí caracterizar sua vida, da forma possibilitada pelas informações disponíveis, não só para confrontá-la com a de CJM ou seus familiares, de “status” social mais elevado, mas também para incorporar subsídios adicionais sobre como vivia nessa sociedade uma pessoa de mais baixa posição na hierarquia social. Destaca-se, nesse capítulo, a acusação injusta de que o contínuo/porteiro Fidêncio Munhoz foi vítima, em decorrência certamente de uma postura preconceituosa contra ele, pela sua condição social (ou talvez mestiça). Destaca-se também a atitude progressista dele, indo à imprensa e denunciando o coronelismo da época. Da mesma forma, tem um caráter progressista seus esforços para a criação, em Curitiba, de uma sociedade operária, no ano de 1883.


NOTAS


(1) Apud MACIEL, Luis Carlos-- “Sartre”. Rio de Janeiro: José Álvaro Ed., 1967, p.9

(2) Segundo o DD de 13.05.1876- p. 4, Luiz Manoel Agner tinha então 42 anos. Era assim 17 anos mais jovem que CJM. 

(3) MUNHOZ, Alcides-- “Folhas Cadentes”- op cit, p. 11

(4) NEGRÃO, Francisco-- “Genealogia Paranaense”- op cit, v.I, p. 237

(5) DD de 10.01.1872- p.3

(6) DD de 26.06.1858- p. 4

(7) Cf. DD de 28.07.1866, p. 3, e DD de 4.08.1866, p.2.

(8) DD de 8.07.1854- p. 3. Presidia a Sociedade Harmonia o Dr. Antonio Francisco de Azevedo.

(9) Cf. edição do DD de 4.07.1863- p.3. Os outros integrantes da comissão eram Joaquim Dias da Rocha e José Matias Gonçalves Guimarães. Na p.4, afirma-se que os amigos do Dr.Sebastião ”oferecem-lhe esta noite no salão do Cassino Curitibano uma chávena de chá”. Alguns dias depois, no DD de 8.07.1863, p.4, consta matéria sobre a “partida” oferecida ao Dr. Sebastião. A reunião terminou às 2 horas. O salão estava “decorado com elegância, e simplicidade/.../ O belo sexo apresentou-se como sempre digno do seu epíteto”.

(10) NICOLAS, Maria-- “130 Anos de Vida Parlamentar Paranaense”- op cit, p. 84

(11) DD de 22 e 26.09.1860 

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